Diego todos os dias sai
de casa com medo. Medos: no plural! Medo de ser ofendido na rua por
desconhecidos, como tantas vezes já aconteceu. Medo de passar por mais um
constrangimento pelo professor ou professora ao chama-lo pelo nome de registro
durante a aula. Medo de mais uma vez aquele rapaz que se mostra interessado nele,
depois que souber da sua transgeneridade, se afastar do nada, ou até algo pior:
lhe agredir. Diego vive todos os dias de sua existência com muita ansiedade
pelo que pode vir a acontecer com ele, pelo simples fato de ser quem é. Essa é
a realidade de muitas pessoas transgênero, transexuais e travestis no Brasil e
no mundo.
Segundo a ANTRA
(Associação Nacional de Travestis e Transexuais), em 2017 o Brasil registrou um
número de 179 pessoas trans assassinadas, sendo que 95% destes assassinatos
apresentaram requintes de crueldade (Fonte: UOL, 2018).
Mas afinal de contas, o
que são pessoas trans e travestis? A literatura referente as identidades trans ressalta que
transexualidade e travestilidade são experiências identitárias que produzem
feminilidade (mulher trans/travesti) ou masculinidade (homem trans) em suas
perfomatividades de gênero independentemente de seus corpos (PAIVA &
FÉLIX-SILVA, 2014; BENTO, 2012). Sendo assim, segundo Bento (2012), tais
identidades são caracterizadas pelo conflito com as normas de gênero
estabelecidas sócio histórico e culturalmente como adequadas.
Estes conflitos podem
ser tanto a discriminação e exclusão social associadas ao machismo, racismo e
misoginia, como a própria transfobia, ou seja, atitudes discriminatórias e
violentas direcionadas a pessoas transgênero, transexuais e travestis. Tais
fenômenos, tem repercussões e consequências diretas no processo de adoecimento integral
dessa população.
Em relação a dimensão
biológica, as pessoas trans e travestis comumente demandam modificações
corporais significativas, desde a administração de hormônios para o
(re)construção de seus corpos, de forma a se sentirem mais congruentes com o
gênero ao qual se identificam, até a realização de cirurgias
transgenitalizadoras. No que se refere a dimensão psicológica, estes indivíduos
podem apresentar altos indicies de quadros ansiógenos, depressivos e uso
abusivo de álcool e outras drogas (SALES, LOPES & PERES, 2016; SAMPAIO
& COELHO, 2013) desencadeados pela vulnerabilidade social gerada através das
diversas formas de transfobia, muitas vezes sendo esta discriminação uma
expressão de inautenticidade – conformismo ou totalitarismo – de quem a comete.
E o que a logoterapia e
análise existencial frankliana teriam a ver com isso? Exatamente tudo.
Compreender o ser humano dentro de uma ontologia tridimensional, ou seja, sendo
constituído por suas dimensões biológica, psíquica e noética, relacionando-se
integralmente com a esfera social, através da autotranscedência, é também
considerar que os fatores supracitados podem incidir negativamente para o
encontro com o sentido da vida destas pessoas, desencadeando um quadro
denominado por Frankl (2008) de vazio existencial, tendo como principais
sintomas as adicções, passividade/indiferença e sentimento de vazio interior
(CARVALHO, 1993) que podem levar a violência e/ou suicídio.
Uma das pautas que o
movimento trans e travesti reivindica atualmente, em conjunto com profissionais
de saúde militantes da causa, é a despatologização de suas identidades,
principalmente dentro do Processo Transexualizador do Sistema Único de Saúde,
redefinido e ampliado em 2013 (BRASIL, 2013). Despatologizar se fazer
necessário pois tais identidades não são expressões de um caráter desajustado
ou doentio, mas sim uma das possíveis formas de se experienciar socialmente o
gênero, aquilo que se atribui culturalmente como sendo masculino e/ou feminino,
não se fixando a um suposto destino biológico que lê os corpos humanos como
sendo corpos de macho ou fêmea. Minar desses sujeitos a autoafirmação de gênero,
permitindo que tenham de se sujeitar a diagnósticos médicos para terem o
direito de modificar seus corpos e retificar seus registros civis, é acima de
tudo, negligenciar a sua liberdade interior, aquilo que marca as suas essências
enquanto pessoas.
Estar atento e bem
informado sobre a realidade vivenciada por pessoas transgênero, transexuais e
travestis é primeiramente um compromisso ético diante do sofrimento do outro, um
outro que é tão humano quanto eu e por isso digno de uma existência possível de
significados. Que possamos nos afetar diante dessas realidades e exercer o que Lukas
(1992) nomeia por valor de atitude generalizado, pensando em aplicações
práticas da logoterapia no setor da saúde, educação, assistência social, dentre
outros, que ofereçam subsídios suficientes para a conquista de direitos básicos
e o encontro com o sentido da vida destas pessoas.
Pedro Augusto Lima Monteiro
Graduando em Psicologia pela Universidade
Estadual da Paraíba e membro da Comissão de Mídia e Divulgação do Núcleo Viktor
Frankl.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENTO, B. O que é transexualidade. 2ª
edição. São Paulo: Brasiliense, 2012.
BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do
Ministério. Portaria Nº 2.803, de 19 de novembro de 2013. Redefine e amplia
o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Disponível em:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2803_19_11_2013.html>.
CARVALHO, J. M. R. de. O vazio existencial e o
sentido da vida. Inform. Psiq., v. 12, n. 3, p. 111-115, 1993.
FRANKL, V. E. Em busca de sentido: um
psicólogo no campo de concentração. Traduzido por Walter O. Schlupp e Carlos C.
Aveline. 25. ed. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 2008.
LUKAS, E. Prevenção psicológica: a
prevenção de crises e proteção do mundo interior do ponto de vista da
Logoterapia. Petrópolis: Editora Vozes, 1992.
PAIVA, A. L. dos S. & FÉLIX-SILVA, A. V.
Produção protética dos corpos: experiências TRANS e políticas de saúde. Revista
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SALES, A.; LOPES, H. P. & PERES, W. S.
Despatologizando as travestilidades e transexualidades. Periódicus, v.
1, nº 5, 2016, p. 56-72.
SAMPAIO, L. L. P. & COELHO, M. T. A. D. A
transexualidade na atualidade: discurso científico, político e histórias de
vida. In: Anais do III Seminário Internacional Enlaçando Sexualidades.
Salvador: UNEB, 2013.
UOL.
Brasil lidera ranking de mortes de travestis e trans; um é morto a cada 48h.
Disponível em:
https://estilo.uol.com.br/comportamento/noticias/redacao/2018/01/09/brasil-lidera-ranking-de-mortes-de-travestis-e-trans-um-e-morto-a-cada-48h.htm